7.2.10
MEC | o futebol a cem por cento
Cada vez abdico mais das minhas certezas, atribuindo-as a medos que nasceram para proteger as minhas incertezas e ignorâncias. Ser do Benfica é das mais difíceis, porque está ligado ao ser e porque não me lembro de o ter escolhido. Bem ditas as coisas, não sinto os outros clubes. Mas tenho vindo a admirá-los, por razões reais, mais do que eu admiro o meu clube, por razões irrestivelmente metafísicas, familiares, ou sanguíneas. Estando a ver o Nacional-Porto, com os meus três grandes amigos, Maria João (do Sporting), Manuel Serrão (do Porto) e Rui Zink (do mesmo abstracto, profundo e sublimemente indiferente Benfica do que eu), reparei que Benfica, Porto e Sporting estavam a lutar pelo mesmo lugar. Perguntei ao Manel se a vitória do Sporting Clube de Braga, como mais do que merecido campeão nacional, não seria só bom para o Braga como para todo o futebol nacional. O Manel respondeu com a mesma seriedade com que perguntei, sem tirar os olhos do televisor: “Só a vitória do Porto seria bom para o futebol nacional”. E a sportinguista Maria João concordou, mudando para Sporting, que o pai dela amava, rodeado por uma família de benfiquistas. E o benfiquista Rui também concordou, ao mesmo tempo (senão antes) do que eu. Todos aceitamos o nosso sectarismo. Mas, contagiados pela consciência subjectiva do Manel, todos percebemos que não havia futebol nacional. Daí que eu venha aqui dizer, como tantos outros têm sido obrigados a escrever, que é o Braga que vai à frente e, por ter estado sempre à frente, merece e deve ganhar este campeonato. O Benfica, o Porto e o Sporting terão de sentir-se honrados com o segundo lugar. Na terça-feira, o Porto goleou o Sporting. Desde que almocei com o Manel, no sábado anterior ao de ontem, já é a segunda vez que o Porto arruma 4 ou 5. Começo a desconfiar. Darei e, com o meu espírito de concórdia e vontade traidora de compreender a alegria de todas as vitórias – e, sobretudo, de querer que o Braga ganhe este campeonato, com o Benfica em segundo; o Porto em terceiro e o Sporting num número inaceitável, darei o que a minha alma pede. Não podia falar mais do Braga. Mas todos os comentadores falam – com espanto ou orgulho – e eu não poderia ficar atrás. A verdade é que, por preconceito de finanças, de vaidades e de estatística, pensávamos que o Braga acabaria por ceder à matemática. Não cedeu. Não cedeu e ensinou-nos a todos uma lição. Que jamais poderemos perceber ou aprender. Por não sermos do Braga, ou de Braga. Podemos odiar dizê-lo mas a verdade é que nos habituámos a que o Braga estivesse à frente. De certa maneira, os nossos três clubes apenas disputaram quem é que iria ganhar o privilégio de lutar com o Braga pelo campeonato. Aconteça o que acontecer, o Braga esteve à frente tanto tempo que, mesmo que não ganhe o campeonato, este campeonato será o campeonato que outro clube conseguiu tirar ao Braga, se conseguir. Ao ter este efeito sobre os nossos necessários e saudáveis sectarismos, o exemplo do Braga lembra-nos que todos os grandes clubes já foram mais impressionantes quando eram mais pequenos e mais pobres. O jogo do futebol e a competição desportiva continuam a ser mais ou menos a mesma coisa. O Braga não está apenas à frente apesar das vantagens dos clubes mais ricos. Está à frente porque os clubes mais ricos dão maior importância do que deveriam à sua riqueza. Deixaram-se desconcentrar do futebol a cem por cento. Distraíram-se com outras disputas e outros campeonatos. O Sporting Clube de Braga mostra o que se ganha quando se joga futebol a cem por cento. E não a cem por cêntimos. @ Miguel Esteves Cardoso
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